Diferentes “Eus”
Eu (virtual)
Xá, Duda e os Espelhos Digitais
Ela podia ser qualquer um, menos aquela Eduarda que os outros pensavam conhecer. Enquanto os dedos dançavam sobre o teclado, iluminados apenas pelo brilho frio da tela, Xá emergia como uma entidade autônoma — uma versão mais afiada, mais irônica, mais livre. O blusão com capuz não era apenas um agasalho, mas uma segunda pele, uma armadura contra a banalidade do mundo físico. Na penumbra do quarto, onde a luz do monitor desenhava sombras movediças, ela não era mais a garota que respondia a “Duda” com um sorriso contido. Era Xá, a arquiteta de si mesma, tecendo narrativas em linhas de código e mensagens cifradas pela linguagem peculiar da internet.
O QR Code que servia como sua assinatura virtual não era apenas um ícone, mas um portal—uma promessa de que, por trás daquela matriz de pixels, havia algo maior, um eu em constante mutação. Seus amigos virtuais não a conheciam, conheciam Xá. E Xá era tudo o que Duda não ousava ser: sarcástica quando queria, cruel se necessário, generosa apenas quando lhe convinha. Não havia ali a pressão do olhar alheio, do julgamento silencioso que acompanha cada gesto no mundo concreto. Na tela, ela podia apagar, editar, reinventar.
Mas quem, de fato, estava do outro lado? Às vezes, quando o cansaço batia e o silêncio da madrugada se tornava opressivo, Duda se perguntava se Xá não era mais real do que ela própria. Afinal, quantas versões de si mesma haviam se acumulado nos últimos anos? A estudante aplicada, a filha obediente, a colega tímida — todas eram máscaras tão frágeis quanto o avatar que agora dominava sua existência. No ecrã, ela não precisava de coerência. Podia ser um paradoxo ambulante: vulnerável e cínica, solitária e cercada, anônima e, de algum modo, mais vista do que nunca.
E assim, entre posts, mensagens efêmeras e likes que desapareciam na voracidade do feed, Duda — ou Xá, ou quem quer que fosse— descobria uma verdade incômoda: sua identidade não estava mais dentro dela, mas espalhada em fragmentos digitais, cada um refletindo uma faceta diferente. Talvez não houvesse um “eu” verdadeiro, apenas camadas de performance, uma coleção de personas que se alternavam conforme a plateia.
O computador se desligou, mergulhando o quarto em escuridão. Por um instante, antes que os olhos se ajustassem à falta de luz, ela não soube ao certo qual das suas muitas faces a encarava no reflexo da tela negra.
Eu (narrativo)
Amanda e o Labirinto do Eu
Ela escrevia com alma. Não que fosse escritora, mas estava procurando o fio da sua meada, da sua história de vida. Ela escrevia um diário repleto de passagens vivenciadas à luz de suas memórias, que, a bem da verdade, eram muitas. Amanda amava a vida e adorava rever as suas passagens naquele diário ao qual dava tanta importância quanto reserva. É que ninguém sabia da existência dele, era algo tão pessoal e íntimo que Amanda não conseguia dividir com ninguém da família. Ela adorava reavaliar-se à luz de suas decisões anteriores e via um significado muito profundo: havia uma escada por onde ela subia ou descia, de acordo com suas avaliações sobre decisões passadas e, obviamente, vividas. Amanda estava disposta a contar e recontar a sua história para si. Era uma maneira de encontrar significado para a sua identidade e sentido para a própria vida.
Mas de onde vinha tanta inspiração?
Talvez da maneira como a luz da manhã entrava oblíqua pelo vidro da janela, iluminando não apenas o papel, mas os recantos mais obscuros de suas lembranças. Ou talvez do silêncio da madrugada, quando o mundo parecia suspenso e apenas ela, sua caneta e o passado dialogavam em um murmúrio contínuo. Amanda descobrira que a memória não era um arquivo estático, mas um rio que se modificava conforme o curso de suas reflexões. O que hoje parecia um erro, amanhã poderia ser reinterpretado como um desvio necessário; o que outrora fora dor, agora, sob o prisma do tempo, transformava-se em aprendizagem.
Era curioso como, ao reescrever certos episódios, ela não apenas os recordava, mas os reinventava. Não por falsidade, mas porque o eu narrativo — aquele que conta a história — nunca é idêntico ao eu vivido. A Amanda que escrevia não era mais a mesma que chorara naquela tarde de outono, nem a que rira sem cuidado naquela festa distante. A narrativa era seu modo de costurar os fragmentos, de encontrar padrões onde antes havia apenas caos. Como um ourives, ela polia as pedras brutas de sua experiência até extrair delas um brilho que só ela podia ver.
Às vezes, relia páginas antigas e espantava-se com a própria voz. “Eu realmente pensei isso?”, perguntava-se, como se aquela escrita pertencesse a uma estranha. Outras vezes, encontrava frases que ainda ecoavam com uma verdade tão viva que doía. Era assim que funcionava o jogo da memória: um eterno reajuste entre o que fomos, o que somos e o que acreditamos ter sido.
E, no fundo, Amanda sabia que não estava apenas registrando sua vida — estava construindo sua vida. Porque a identidade não é um fóssil enterrado no passado, mas uma escultura moldada a cada releitura, a cada nova versão que contamos a nós mesmos. Seu diário era mais que um livro de confissões; era um mapa de si, desenhado e redesenhado conforme ela avançava, perdia-se e reencontrava o caminho.
E assim, entre linhas e rasuras, Amanda seguia escrevendo — não para fixar quem fora, mas para descobrir quem ainda poderia ser.
Eu (psicanalítico)
Seu caso era investigar o famoso caso Mafalda, que era uma falsária latino americana que entrara disfarçada no país. Narciso era um tarimbado investigador da polícia federal designado para o caso. Um olhar aqui, outro ali, e Narciso já pôde perceber que se tratava de uma profissional. O dinheiro achado no cofre da sala, camuflado por um quadro de arte, e cujo segredo foi conseguido graças à inteligência artificial, dava a dimensão da qualidade que ela e sua gangue davam ao papel moeda. Narciso se viu tentado a pegar um tanto daquele dinheiro furtivamente; uma insidiosa voz dentro dele praticamente já o tinha convencido disso, quando outra voz, esta altissonante e imperativa, lhe disse um sonoro NÃO. Narciso paralisou por instantes, mas logo atirou longe o maço daquele dinheiro suspeito, como se ele lhe trouxesse uma repugnância súbita. Percebeu que estava levemente trêmulo, expressando nervosismo.
Narciso recuou um passo, seu olhar fixo em outro maço de notas que repousava sobre a mesa, como se aquelas figuras pintadas em papel fossem um reflexo deformado de sua própria alma. O dilema que acabara de viver não era novo, mas a intensidade da tentação e da aversão o atingiram com uma força quase física. Como se o próprio ego, aquela instância psíquica que media as tensões entre os desejos do id e as exigências do superego, tivesse se posto em confronto direto com o momento.
O impulso de se apropriar daquelas notas parecia oriundo de uma parte mais primitiva de sua psique. Era o desejo que falava, uma voz quase primal que ecoava as promessas fáceis de poder e prazer imediato. Essa tentação era como o desejo insaciável do id, sempre à espreita, pressionando as fronteiras do ego, querendo consumir e satisfazer suas necessidades sem se importar com as consequências. Mas a resistência vinda do superego, forte e retumbante, não permitiu que ele sucumbisse. O superego, com sua moralidade rígida e normas sociais internalizadas, se impôs de forma quase autoritária, uma voz que disse não, e o ordenou a afastar-se, como um farol a iluminar a senda reta em meio à escuridão da corrupção interna.
Narciso sabia que aquele momento era apenas um reflexo de algo mais profundo, uma batalha constante em sua psique. O ego, essa instância que tanto precisava de harmonia, era, no fim das contas, o único mediador entre o caos primitivo do id e as aspirações idealistas do superego. Um delicado fio de Ariadne que o conduzia entre as duas forças antagônicas. Porém, ele não podia se permitir ser um simples espectador dessa luta. Não podia ignorar que, como investigador, sua própria vulnerabilidade, como ser humano, influenciava cada decisão que tomava. Seria um erro subestimar o impacto das questões internas no raciocínio lógico, como se a mente fosse uma máquina fria, desprovida de emoções e conflitos internos.
Mas o que mais o inquietava, o que o levou a mudar de foco, foi o que se seguia daquela situação. A racionalização do que ele acabara de viver deu-lhe uma ideia. Não era mais o dinheiro que ele deveria temer, mas sim o segredo por trás daquela falsificação. O verdadeiro crime não era a simples circulação de cédulas, mas a forma como uma operação tão complexa e bem orquestrada operava no coração do sistema financeiro. A falsificação não era apenas uma questão de engenharia do papel, mas uma alegoria sobre a própria natureza da verdade e da mentira, do real e do ilusório.
O pensamento surgiu como uma epifania: Mafalda não era apenas uma falsária, ela era, talvez sem saber, uma metáfora viva do jogo de máscaras que todos nós, em nossa fragilidade psíquica, jogamos todos os dias. Cada ser humano, ao entrar na sociedade, precisa vestir um disfarce, uma persona que se adapta ao mundo externo, ainda que em detrimento de sua verdadeira essência. O dinheiro ali encontrado era apenas um reflexo do nosso próprio desejo de poder, da tentativa constante de legitimar nossa existência através de símbolos e convenções sociais. Como os valores econômicos, nossa identidade, muitas vezes, é forjada a partir de representações externas, desconsiderando a essência do ser.
Narciso se sentou, os olhos fixos na mesa, e o peso de sua percepção se acumulou dentro dele. O que Mafalda representava para ele, senão um reflexo das tentações que ele próprio enfrentava? Cada ato de desonestidade, cada pequeno deslize moral, não seria uma falsificação da própria alma? Não seria ele, também, uma peça de um grande jogo de enganos, onde os valores humanos mais profundos estavam sendo transformados em mercadoria?
A tensão interna, que o fizera hesitar diante da tentação, agora se transformava em uma nova compreensão. O ego, que antes hesitara entre o desejo e a moralidade, agora se via imerso em uma reflexão mais ampla. A investigação de Mafalda não era apenas uma busca por criminosos, mas também uma jornada interna sobre os limites do bem e do mal, da verdade e da mentira. E ele, Narciso, não poderia mais ignorar que o verdadeiro desafio era entender como suas próprias máscaras e disfarces, construídos ao longo dos anos, se encaixavam nas complexas teias do destino humano.
Ele levantou-se com a sensação de que a investigação havia tomado um rumo inesperado. O verdadeiro caso não era apenas o de uma falsária. O caso era, acima de tudo, o de um homem tentando descobrir a verdade sobre si mesmo, no meio de uma realidade distorcida por suas próprias forças psíquicas.
Eu (existencialista)
Plínio era um sujeito que prezava viver com máxima liberdade, no entanto estava longe de ser irresponsável. Livre, mas consciente, podemos dizer assim. O peso existencial que isso exercia nele também era grande: ele quase sempre se pegava se perguntando: “Que mundo é esse, que não faz sentido algum?” Havia, sim, um peso existencial considerável nisso tudo, uma vez que Plínio era um rapaz inteligente e questionador, de maneira que viver entre a liberdade e a responsabilidade tinha um custo existencial para ele: entender o propósito de estar no mundo.
Sabia — ainda que de forma intuitiva — que não existia um roteiro prévio, um mapa a ser seguido com segurança, como quem caminha com os pés firmes num caminho de pedras assentadas por gerações anteriores. A cada passo, era ele mesmo quem lançava as pedras ao chão, moldando a estrada ao sabor de suas escolhas. E isso o angustiava. Pois não havia como delegar essa construção a ninguém: era, ele próprio, o pedreiro e o passageiro, o escultor e a escultura.
Havia dias em que a liberdade lhe parecia uma dádiva sublime — um campo aberto onde tudo podia florescer — e havia outros em que ela se tornava um fardo quase insuportável, o tipo de liberdade que dilacera ao invés de libertar, porque exige decisões contínuas, definidoras, muitas vezes irreversíveis. E, sobretudo, porque exigia que ele respondesse por si mesmo. Não havia deuses para culpar, nem sociedade para redimir: o sentido, se é que havia algum, teria de ser construído ali, em plena vertigem do viver.
Plínio se perguntava, então, se o mundo realmente precisava fazer sentido ou se o absurdo era, na verdade, o seu ponto de partida. Talvez, pensava ele, o real desafio não estivesse em decifrar o mundo, mas em suportar sua indiferença e, mesmo assim, erguer algo próprio dentro dele — uma ética, uma estética, uma forma de ser que fosse, ao menos, honestamente sua.
E era aí que residia sua grandeza e sua tormenta: a possibilidade de tornar-se alguém, e não apenas alguém no mundo. Um “eu” não herdado, não imposto, mas esculpido com o cinzel das próprias ações, com a argamassa de suas decisões cotidianas, com a matéria crua do que escolhia fazer — ou recusar-se a fazer — em cada manhã que se abria diante dele como um campo de possibilidades.
Ser livre, para Plínio, não era um ideal romântico. Era uma tarefa. Uma obra inacabada. Uma inquietação que morava fundo e que, vez ou outra, sussurrava em seu íntimo: “Não basta existir, é preciso justificar a existência.”
Naquela manhã, Plínio caminhava lentamente até a cafeteria em que costumava se refugiar nas horas vagas. O céu estava pesado, e uma névoa suave pairava sobre as calçadas como se o próprio mundo hesitasse em se mostrar por completo. Era uma terça-feira, aparentemente comum, mas em seu íntimo algo pulsava com intensidade incomum — uma sensação quase imperceptível de que algo dentro dele estava prestes a mudar.
Sentado à mesa do canto, diante de uma xícara de café morno, Plínio folheava um caderno de anotações. Ali, registrava pensamentos, fragmentos de ideias, inquietações soltas. Era um diário de reflexões, não tanto sobre o mundo, mas sobre si mesmo diante do mundo. Naquela página, escreveu:
“Cada escolha que faço esculpe a figura do homem que sou. Mas e se eu estiver esculpindo algo que não reconhecerei depois? E se, no fim, me tornar um estranho para mim mesmo?”
Interrompeu-se quando Clara entrou na cafeteria.
Clara era uma conhecida de Plínio da universidade — uma figura marcada por convicções firmes, comprometida com causas sociais, sempre engajada em algo maior que ela mesma. Eles haviam tido longas conversas antes, encontros quase filosóficos, onde divergiam tanto quanto se admiravam.
— Você ainda se esconde aqui? — disse ela, sorrindo, puxando a cadeira à frente dele sem esperar convite.
— Não me escondo. Tento me encontrar — respondeu Plínio, com um meio sorriso.
Ela o observou com aquele olhar atento, quase clínico.
— Você sempre fala disso: de se encontrar. Mas e se esse encontro nunca acontecer? E se a busca for, na verdade, uma desculpa pra não se comprometer com nada?
A pergunta foi lançada como uma pedra num lago calmo. Plínio permaneceu em silêncio por alguns segundos. Aquilo o atingira em cheio, não pela provocação, mas pela pertinência. E era justamente essa a angústia de estar vivo: a consciência de que até mesmo o ato de buscar um sentido podia se tornar uma fuga do próprio viver.
— Talvez seja isso, sim — respondeu, por fim. — Talvez eu esteja fugindo do conforto de uma resposta pronta. Você sabe… Eu temo o que é definitivo. Escolher é morrer um pouco para tudo o que não foi escolhido.
Clara arqueou uma sobrancelha, desafiando-o.
— E se a responsabilidade de viver for justamente isso? Morrer mil vezes, todos os dias, para que algo em nós viva de verdade?
Plínio sentiu um frio leve subir pelas costas. Aquela conversa, aquele olhar, aquela terça-feira — tudo parecia convergir para um ponto de inflexão. Ele podia continuar sendo o espectador lúcido da própria liberdade ou poderia, enfim, atravessar a linha: fazer uma escolha concreta, ainda que com medo. Talvez não fosse possível pensar a vida até que ela fizesse sentido. Talvez fosse preciso vivê-la para que, ao final, algo — mesmo que tênue — se justificasse.
Naquela tarde, ao sair da cafeteria, o céu já estava limpo. Plínio não sabia se havia encontrado alguma resposta, mas sentia, pela primeira vez em muito tempo, que escolher — ainda que às cegas — era melhor do que permanecer à margem.
E foi nesse instante, atravessando a rua sem saber exatamente para onde ia, que ele começou, de fato, a existir.
Eu (fenomenológico)
O fenômeno estava posto ali nas suas barbas. Jerônimo sentia-se imerso numa realidade tão pessoal que seria difícil dissociar sua vivência no instante do seu passado ou mesmo de seu eventual futuro. Simplesmente submergiu nas sensações que lhe pareciam muito reais e duradouras. O tempo, aliás, lhe era um tanto estranho, lhe dava uma sensação de distorção, uma perda do tempo que se esvaía por entre seus dedos, não deixando rastros do passado e tampouco lhe trazendo qualquer expectativa do que poderia vir à frente. Jerônimo vivia aqui e agora de maneira intensa e profunda. Era dessa forma que se reconhecia o fenômeno do seu eu.
Ele respirava a essência do presente, um instante que se desdobrava como a pétala de uma flor ao amanhecer. Cada som, cada cor, cada odor se amalgamava numa sinfonia de percepções que o envolvia, como se o mundo, em toda a sua densidade, fosse tecido por fios de sensibilidade. O riso distante de crianças brincando, o aroma de café fresco a dançar no ar e o leve toque da brisa na pele eram, para Jerônimo, arquétipos da vida pulsante. Ali, não havia espaço para reminiscências que o arrastassem para trás, nem para temores que o lançassem ao futuro. O agora vibrava em seu ser como uma melodia antiga, já conhecida, mas sempre renovada na sua novidade.
Cada passo que dava parecia ecoar no espaço, reverberando um sentido de pertencer a um universo que o acolhia sem reservas. Ele se permitia ser apenas um espectador e, ao mesmo tempo, o ator principal de sua saga singular — uma dança delicada entre o ser e o que se revela em cada nuance do agora. Essa ausência de amarras temporais conferia-lhe uma liberdade sutil, um convite a explorar não apenas o mundo exterior, mas também o vasto território de seu interior, onde emoções e reflexões se misturavam como as cores de um pôr do sol.
Jerônimo começou a perceber a riqueza dos detalhes que muitos tomavam como mera normalidade: a textura da madeira de um banco sob suas mãos, o sussurro das folhas ao serem tocadas pelo vento, a textura da areia sob seus pés descalços na praia. Ele se sentia como um artista diante de uma tela viva, onde cada pincelada, mesmo que imperceptível, formava um quadro que desafiava a efemeridade do tempo. O eu fenomenológico não era um mero conceito acadêmico; era a própria essência da vivência, uma exploração da autoidentidade que não cabia em categorias rígidas ou definições limitadas.
A cada momento, ele se tornava um novo Jerônimo, livre das câmaras de eco do seu passado. As cicatrizes que carregava não eram mais marcas indeléveis, mas capítulos de uma história em constante reescrita, onde cada experiência ali vivida se tornava parte do que era, mas não o definia. Ali estava a beleza da sua existência: em ser um rio fluente, não uma pedra que imobiliza.
E assim, rodeado por uma plenitude que desafiava a lógica do tempo, Jerônimo continuou sua jornada, perdendo-se em cada instante e, ao mesmo tempo, encontrando-se nas dobras infinitas do ser, onde o eu fenomenológico se revelava como a mais pura expressão de sua humanidade. Esta consciência viva e pulsante era, finalmente, o portal para a transcendência, um mosaico de experiências que não deixavam de ser suas, mesmo na sua perpetuidade efêmera.
Eu (social)
Nancy e os Espelhos do Eu: A Arte da Performance e a Busca pela Coerência
Nancy era uma mulher interessante, mas não por acaso. Sua habilidade de transmutar entre eus não era mero acidente social, mas uma coreografia refinada—uma dança de máscaras tão bem ensaiada que, por vezes, até ela se esquecia de que as vestia. Goffman diria que ela era uma atriz excepcional no palco da vida, capaz de ajustar seu desempenho ao público, ao cenário, ao script invisível que regia cada interação. Mas o que ele talvez não dissesse é que, nos bastidores, longe dos holofotes sociais, Nancy se debruçava sobre um vazio: quem era ela quando ninguém a observava?
Ela não era incoerente, como poderiam acusá-la os menos perspicazes. Pelo contrário: sua coerência residia justamente na consciência aguda de que cada performance era um fragmento necessário, uma sobrevivência. No escritório, ela era a profissional impecável, cortês e assertiva; nas reuniões familiares, a filha paciente, quase nostálgica; nos bares da cidade, a conversadora afiada, que ria com os olhos antes mesmo de os lábios se moverem. Cada persona era autêntica em seu contexto, mas, no silêncio da noite, elas ecoavam como vozes dissonantes.
A sociedade, é claro, fornecia o palco e os roteiros. Mas Nancy começava a suspeitar de que a culpa não estava nas regras do jogo, e sim na ilusão de que deveria existir um “eu verdadeiro” escondido sob as camadas—algo puro, intocado pelas expectativas alheias. E se a verdade fosse outra? E se o eu social não fosse uma traição ao “verdadeiro self”, mas a única matéria-prima de que ele dispunha para existir?
Afinal, não há identidade fora do espelho alheio. O que Nancy chamava de “incoerência” talvez fosse apenas a complexidade de quem sabe demais—de quem encena, mas também observa a própria encenação. Talvez o problema não fosse a multiplicidade, mas a ânsia por uma unidade que nunca existiu.
E então, numa manhã qualquer, ela se permitiu um experimento: em vez de perguntar “quem eu sou?”, começou a perguntar “quem eu posso ser?”. A culpa dissolveu-se como névoa, porque Nancy, enfim, entendeu: o eu não é uma essência a ser descoberta, mas uma performance a ser vivida—sem pedir desculpas.