Resenha do livro Sátántangó

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A notícia de que László Krasznahorkai é o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2025 não poderia ser mais justa. E não há obra que melhor encapsule o gênio do autor húngaro do que seu romance de estreia, Sátántangó (1985), uma obra-prima atemporal que permanece tão avassaladora e relevante quanto há quatro décadas. Ler este livro é uma experiência imersiva e transformadora, um mergulho em um universo onde a linguagem, a paisagem e a condição humana se fundem em um canto fúnebre de rara potência.

A Trama: Uma Esperança que é uma Maldição

A narrativa se passa em uma colônia coletiva húngara, abandonada e encharcada por uma chuva interminável. O local é um pântano de lama, decadência física e desespero moral, habitado por um punhado de personagens cujas vidas são marcadas pela embriaguez, pela traição e por uma paralisia existencial. A tese central do livro é anunciada desde o início: “Futaki soube, na noite anterior, que o mundo não seria mais o mesmo”. A chegada de Irimiás e Petrina, duas figuras messiânicas e ao mesmo tempo demoníacas, serve como o catalisador para o colapso final.

A estrutura do romance é, como o título sugere, uma “dança tango de Satanás”: composto por 12 capítulos, ele avança e retrocede no tempo, mostrando os mesmos eventos sob perspectivas diferentes. Essa estrutura circular e hipnótica não é um mero artifício estilístico; é a própria essência da obra. Ela reflete a sensação de que a história humana é um ciclo sem fim de esperanças frustradas, promessas vazias e traições inevitáveis. A chegada de Irimiás, que promete redenção e uma nova comunidade, é na verdade o prenúncio da mais profunda desilusão, uma repetição, em escala maior, das pequenas traições que já corroíam o lugar.

Os Pontos Principais: Desespero, Fé e a Corrosão da Linguagem

  • O Fim da Utopia: Sátántangó é um poderoso epitáfio para o projeto socialista na Europa Oriental. A colônia coletiva é a antítese da comunidade ideal; é o que resta quando a ideologia falha e só sobra o cinismo e a luta pela sobrevivência mais básica. Krasznahorkai expõe a falácia de qualquer sistema que prometa um futuro radiante, mostrando como ele é sempre vulnerável à natureza humana, à ganância e à manipulação.
  • A Figura do Falso Messias: Irimiás é um dos personagens mais fascinantes da literatura moderna. Ele é visto pelos aldeões como um salvador, um líder carismático e inteligente que pode tirá-los daquele lodaçal. No entanto, o leitor e alguns personagens percebem sua natureza ambígua e manipuladora. Ele é um deus ex machina perverso, um profeta cujas profecias são armadilhas. A obra explora a necessidade humana de acreditar em algo – mesmo que esse algo leve à própria destruição.

  • A Paisagem como Personagem: A chuva constante, a lama onipresente, o vento uivante e a escuridão opressiva não são apenas um pano de fundo. Eles são uma extensão do estado psicológico dos personagens. O mundo exterior é tão corrupto e desolado quanto o interior deles. Essa fusão cria uma atmosfera de pesadelo claustrofóbico, onde não há escapatória.

O Estilo Krasznahorkai: A Prosa que Respira

É aqui que reside o cerne da genialidade do novo Nobel. Krasznahorkai é famoso por seus parágrafos longuíssimos, que podem se estender por páginas inteiras, em frases sinuosas, complexas e ritmadas que mais se assemelham a uma composição musical ou a um fluxo de consciência coletivo.

Sua prosa não é difícil por ser herméticca, mas porque busca capturar a própria textura do pensamento, a ansiedade e a paranoia que fervilham na mente daqueles personagens.

Ler Sátántangó é uma experiência física. A falta de pontos finais convencionais cria uma sensação de sufocamento e de que não há pausa, não há respiro, assim como não há alívio para os habitantes da colônia. É uma prosa hipnótica e exaustiva, que exige do leitor uma entrega total. Essa escolha estilística é absolutamente crucial para o tema: a linguagem, como a chuva, é um dilúvio que tudo cobre e corrói.

Legado e a Consagração com o Nobel de 2025

A premiação de Krasznahorkai em 2025 consagra um autor cuja obra é um antídoto vital para a velocidade e a superficialidade do nosso tempo. Sátántangó não é um livro para ser consumido rapidamente; é para ser degustado, sofrido e refletido. Sua influência é vasta, sendo a mais conhecida a adaptação cinematográfica homônima de Béla Tarr, com mais de sete horas de duração, que traduz fielmente a atmosfera e o ritmo da prosa para as imagens.

Veredito Final

Sátántangó não é uma leitura fácil ou agradável. É um livro desafiador, sombrio e, por vezes, profundamente angustiante. No entanto, é uma obra de arte monumental, daquelas que alteram permanentemente a percepção do leitor sobre o que a literatura pode alcançar. A escolha da Academia Sueca em 2025 apenas confirma o que os leitores já sabiam: László Krasznahorkai é um dos últimos verdadeiros titãs da literatura, um arquiteto de mundos linguísticos únicos, e Sátántangó é a sua pedra fundamental, um tango melancólico e eterno para a condição humana em seu estado mais cru. Leitura obrigatória para qualquer um que leve a sério a arte da palavra escrita.

Ler livro aqui.

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